sábado, 5 de junho de 2010

Eu ou ele?

As categorias de pessoa em discursos podem servir para criar efeito de distanciamento ou proximidade. Sabemos que há três pessoas gramaticais: a 1ª indica aquele que fala; a 2ª aponta aquele com quem se fala e a 3ª denota aquele ou aquilo de que se fala.
Num artigo publicado na Folha de S. Paulo de 31/ 01/2010, Elio Gaspari relata que Lula teria dito: " O FMI chegava ao Brasil humilhando o governo, dando palpite. Se antes era o Brasil que devia ao FMI e ficava como cachorro magro com o rabo entre as pernas, agora quem me deve é o FMI". O articulista acrescentou o seguinte comentário: "O FMI não deve dinheiro a Lula. Deve ao Brasil".
Gaspari reprovou o Presidente pelo fato de usar a 1ª pessoa do singular no lugar da 3ª do singular, o Brasil. Se recorrermos à teoria da discursivização de pessoa, veremos que não é o caso de o articulista da Folha lançar sua ácida observação sobre o pronunciamento de Lula.
Existem alguns mecanismos de projeção das pessoas discursivas no interior do enunciado. Mais especificamente, a operação chamada embreagem pode justificar a utilização da 1ª pessoa na fala de nosso presidente.
A embreagem é o retorno à estância da enunciação pelo uso de uma pessoa no lugar de outra, criando efeitos de sentido. É exatamente o que fez Lula: usou a 1ª pessoa do singular no lugar de da 3ª pessoa, criando um efeito de subjetividade, para mostrar que cabe a ele representar o Brasil.
Um procedimento inverso é o uso da 3ª pessoa no lugar da 1ª, a fim de criar um efeito de objetividade como se a pessoa falasse de um personagem. É o que faz Pelé, por exemplo: " É difícil carregar a fama do Pelé. As tentações são muitas. O Edson é humano e adoraria levar uma vida mais divertida, mas sabe que é o equilíbrio a base de Pelé. Os dois sabem quanto é importante não decepcionar o povo brasileiro" ( Veja, 4/3/2009)
O plural majestático é outro caso de embreagem: " Nós, el-rei, fazemos saber que...".
Conclusão: qualquer pessoa discursiva pode ser usada no lugar de qualquer outra para produzir efeitos de sentido.

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Quem sou eu

Mirian Rodrigues Braga é mestre e doutora em Língua Portuguesa pela PUC/SP. Especializou-se em analisar as obras de José Saramago. Em 1999, publicou A Concepção de Língua de Saramago: o confronto entre o dito e o escrito e também participou da coletânea José Saramago - uma homenagem, por ocasião da premiação do Nobel ao referido autor. Em 2001, publicou artigo na Revista SymposiuM da Universidade Católica de Pernambuco. Atuou como professora-assistente no Curso de Pós-Graduação lato sensu da PUC/SP. É professora de Língua Portuguesa e Redação no Ensino Médio e Curso Pré-Vestibular do Colégio Argumento.