sábado, 28 de agosto de 2010

Ficha limpa do idioma

Os tempos verbais podem transformar-se em armas perigosas. Explicando: com diferenças sutis entre si, os tempos verbais podem ser usados para alterar o sentido, muitas vezes, intencionalmente. É o caso que ocorreu, recentemente, no projeto de iniciativa popular que impedia a candidatura de políticos condenados pela Justiça, o Ficha Limpa, aprovado pelo Senado em 19 de maio e sancionado pelo presidente Lula em 7 de junho. Tudo ia bem quando, depois de aprovada a lei, uma emenda de última hora alterou um tempo verbal do projeto original.
O projeto original dizia que seriam inelegíveis os políticos que "tenham sido condenados" e os que "foram condenados" pela Justiça, isto é, qualquer pessoa condenada pela Justiça seria inelegível. No entanto, a Câmara dos Deputados, não satisfeita, atenuou o projeto, de forma que a interpretação passou a ser a de que "só os condenados por colegiado de juízes seriam inelegíveis".
Mesmo com essa mudança, segundo alguns políticos, ainda seria necessário alterar o texto para evitar equívocos de sentido. Dessa forma, para "uniformizar o texto", disse o senador Demóstenes Torres (DEM-GO), o senador Francisco Dornelles (PP-RJ) criou emenda que alterou o tempo verbal para "os que forem condenados".
O que terá pretendido o inefável senador ao mudar o tempo "tenham sido" (pretérito perfeito do subjuntivo) por "forem" (futuro do subjuntivo)?
Sabemos que o subjuntivo de "que forem condenados" aponta hipótese de que algo venha ocorrer. Na prática, deixa políticos condenados livres para se candidatarem.
Ao responder à Folha de S.Paulo se havia feito a emenda de redação para beneficiar o deputado Paulo Maluf, também do PP, condenado por colegiado de juízes, Dornelles garantiu que não. Explicou que só quis unificar os tempos verbais porque havia divergências no texto. Então, é lícito perguntar por que não os unificou no passado " foram" no lugar de " tenham sido"?
Não é o primeiro caso de mudança de português que, cosmética na superfície, transforma um texto legal; mas é o primeiro relevo eleitoral dado a um tempo verbal. Nesse caso específico, percebe-se que a troca de tempos verbais delineou implicações reveladoras do caráter do político brasileiro.
Muito oportuno o que disse Josué Machado relativamente a esse carnaval político: " Para que clarear o que vai tão bem na penumbra? "
Esse episódio alerta-nos para as sutilezas dos sentidos construídos pelos tempos verbais. Principalmente nesse ano eleitoral, todo cuidado é pouco. Numa disputa tão acirrada como a que se anuncia, a vigilância na linguagem pode revelar-se mais que justificada.



Quem sou eu

Mirian Rodrigues Braga é mestre e doutora em Língua Portuguesa pela PUC/SP. Especializou-se em analisar as obras de José Saramago. Em 1999, publicou A Concepção de Língua de Saramago: o confronto entre o dito e o escrito e também participou da coletânea José Saramago - uma homenagem, por ocasião da premiação do Nobel ao referido autor. Em 2001, publicou artigo na Revista SymposiuM da Universidade Católica de Pernambuco. Atuou como professora-assistente no Curso de Pós-Graduação lato sensu da PUC/SP. É professora de Língua Portuguesa e Redação no Ensino Médio e Curso Pré-Vestibular do Colégio Argumento.