Sabemos que uma das grandes marcas do texto narrativo é o eixo da temporalidade. Dito de outra forma, toda narrativa é conduzida por uma linha temporal que pode ser sincrônica ou diacrônica; resultando, sempre, numa sucessividade de ação e reação.
Recurso consagrado na literatura, a narração no passado divide a história entre o tempo dos fatos e o tempo em que eles são contados.
Se prestarmos atenção, verificaremos que a maioria das narrativas acontece no passado. Uma voz, que pode ser de um narrador ou de um personagem, conta-nos algo que já aconteceu, não importa se há muitos anos ou há alguns segundos. Narrar no passado é recurso tão generalizado que se tornou quase imperceptível. Instintivamente já esperamos que um conto ou romance seja narrado dessa forma. Está na raiz de toda literatura como " contação de histórias " a reconstituição verbal de um fato acontecido, seja real ou imaginário. Toda narração é a narração presente de um fato passado.
Ou melhor, nem toda. É difícil rastrear quem foram os primeiros autores a contar no presente uma história fictícia. Esta forma de narrar está entrelaçada à literatura modernista que rompeu o molde tradicional de narrar nas últimas décadas do século 19. Em meados do século 20, já era um procedimento absorvido tanto pela alta literatura quanto pela literatura de massas da época.
Vale lembrar que há também a narrativa que busca o imediatismo do cinema. Assim, temos a sensação de ver a história acontecer aqui e agora, diante dos nossos olhos. Para muitos autores do século 20, era um modo instintivamente moderno de narrar, pois parecia prometer uma fusão entre passado e presente, autor e leitor, realidade e história.
Lembremos que Machado de Assis manipulava com maestria as duas formas de narrar (passado e presente), valendo-se do que podemos chamar de ' autoridade de autor', isto é, o poder que tem o autor de fazer o leitor seguir-lhe os passos, aceitando tudo, acreditando em tudo, confiando no jogo imaginativo que o autor lhe propõe. A grande vantagem de Machado era a de que escrevia em folhetins de jornal e se valia da cumplicidade implícita acarretada por esse meio de dialogar com o leitor. É o caso que se verifica em "Habilidoso" (1885), em que emprega o senso de imediatismo, de presença, criando uma narrativa no presente do indicativo.
Outro exemplo de narrativa que recorre ao mesmo expediente é "Noivado"( 1966) de Osman Lins.
Vale a pena revisitar esses textos, ou então conhecê-los, pois eles revelam o grau de excelência em lidar com o tempo na narrativa.
segunda-feira, 28 de junho de 2010
sábado, 19 de junho de 2010
Redação da UNICAMP
Estive hoje na UNICAMP para participar da Oficina de Redação UNICAMP 2010, sob a responsabilidade da COMVEST ( Comissão Permanente para os Vestibulares da UNICAMP).
Já havia combinado com meus alunos que, assim que obtivesse as informações, estaria repassando-as. Optei por deixar, na área restrita do site da escola, uma síntese do conteúdo desse encontro. Conversaremos com mais profundidade sobre o assunto em sala de aula, esclarecendo possíveis dúvidas.
Já havia combinado com meus alunos que, assim que obtivesse as informações, estaria repassando-as. Optei por deixar, na área restrita do site da escola, uma síntese do conteúdo desse encontro. Conversaremos com mais profundidade sobre o assunto em sala de aula, esclarecendo possíveis dúvidas.
sexta-feira, 18 de junho de 2010
Saramago deixa saudade
Estou triste. Meus alunos e amigos sabem que estou triste. Faleceu hoje, José Saramago, o primeiro escritor de Língua Portuguesa a receber o prêmio Nobel de Literatura em 1998.
Ateu, cético e pessimista, Saramago sempre teve atuação política marcante e levantava a voz contra as injustiças, a religião constituída e os grandes poderes econômicos, que ele via como grandes doenças de nosso tempo.
Estou triste. Profundamente triste. No entanto, orgulhosa por ter perseguido por dez anos a obra de um escritor que, de uma singela aldeia de Portugal (Azinhaga), com avós analfabetos e pais humildes, mostrou ao mundo a que veio.
Em A Caverna, há uma passagem que pode encerrar essa postagem:
"(...) a não ser que esses tais rios não tenham duas margens, mas muitas, que cada pessoa que lê seja, ela, sua própria margem, e que seja sua, e apenas sua, a margem a que terá de chegar."
Ateu, cético e pessimista, Saramago sempre teve atuação política marcante e levantava a voz contra as injustiças, a religião constituída e os grandes poderes econômicos, que ele via como grandes doenças de nosso tempo.
Estou triste. Profundamente triste. No entanto, orgulhosa por ter perseguido por dez anos a obra de um escritor que, de uma singela aldeia de Portugal (Azinhaga), com avós analfabetos e pais humildes, mostrou ao mundo a que veio.
Em A Caverna, há uma passagem que pode encerrar essa postagem:
"(...) a não ser que esses tais rios não tenham duas margens, mas muitas, que cada pessoa que lê seja, ela, sua própria margem, e que seja sua, e apenas sua, a margem a que terá de chegar."
terça-feira, 15 de junho de 2010
A mentira tem pernas curtas
Será que a origem da expressão " A mentira tem pernas curtas" está ligada ao pintor Toulouse-Lautrec?
Márcio Cotrim diz que a expressão em questão leva-nos à Paris do final do século 19, época em que viveu Henri Marie Raymond de Toulouse-Lautrec Monfa. Tinha estatura muito baixa por causa de um defeito físico que lhe atrofiara as pernas. Isso, porém, não o impediu de notabilizar-se como um dos grandes nomes da pintura universal.
Criou um estilo conhecido como art nouveau, a partir de ilustrações de cartazes retratando a esfuziante dança do can can no célebre cabaré Moulin Rouge, de onde era assíduo frequentador. Lá consumia o absinto, bebida então em moda por um suposto efeito alucinógeno que fascinava outros artistas daquela geração como Rimbaud, Oscar Wilde, Baudelaire e Vincent van Gogh.
Faleceu precocemente, aos 36 anos, vitimado por sífilis e alcoolismo. Ícone da boemia parisiense, não entrou para a história apenas como grande pintor, mas também por um hábito surpreendente e pouco nobre: o de contador de lorotas, a ponto de seu talento artístico ser comparado às que ele contava em suas rodas sociais.
Tudo isso fez surgir a expressão " a mentira tem pernas curtas."
Chega-se à conclusão de que brilhantes vocações , às vezes, convivem com censuráveis costumes morais. No caso de Lautrec, diante da genialidade do artista, são esquisitices piedosamente aceitáveis. Pecadinhos veniais...
Márcio Cotrim diz que a expressão em questão leva-nos à Paris do final do século 19, época em que viveu Henri Marie Raymond de Toulouse-Lautrec Monfa. Tinha estatura muito baixa por causa de um defeito físico que lhe atrofiara as pernas. Isso, porém, não o impediu de notabilizar-se como um dos grandes nomes da pintura universal.
Criou um estilo conhecido como art nouveau, a partir de ilustrações de cartazes retratando a esfuziante dança do can can no célebre cabaré Moulin Rouge, de onde era assíduo frequentador. Lá consumia o absinto, bebida então em moda por um suposto efeito alucinógeno que fascinava outros artistas daquela geração como Rimbaud, Oscar Wilde, Baudelaire e Vincent van Gogh.
Faleceu precocemente, aos 36 anos, vitimado por sífilis e alcoolismo. Ícone da boemia parisiense, não entrou para a história apenas como grande pintor, mas também por um hábito surpreendente e pouco nobre: o de contador de lorotas, a ponto de seu talento artístico ser comparado às que ele contava em suas rodas sociais.
Tudo isso fez surgir a expressão " a mentira tem pernas curtas."
Chega-se à conclusão de que brilhantes vocações , às vezes, convivem com censuráveis costumes morais. No caso de Lautrec, diante da genialidade do artista, são esquisitices piedosamente aceitáveis. Pecadinhos veniais...
sábado, 5 de junho de 2010
Eu ou ele?
As categorias de pessoa em discursos podem servir para criar efeito de distanciamento ou proximidade. Sabemos que há três pessoas gramaticais: a 1ª indica aquele que fala; a 2ª aponta aquele com quem se fala e a 3ª denota aquele ou aquilo de que se fala.
Num artigo publicado na Folha de S. Paulo de 31/ 01/2010, Elio Gaspari relata que Lula teria dito: " O FMI chegava ao Brasil humilhando o governo, dando palpite. Se antes era o Brasil que devia ao FMI e ficava como cachorro magro com o rabo entre as pernas, agora quem me deve é o FMI". O articulista acrescentou o seguinte comentário: "O FMI não deve dinheiro a Lula. Deve ao Brasil".
Gaspari reprovou o Presidente pelo fato de usar a 1ª pessoa do singular no lugar da 3ª do singular, o Brasil. Se recorrermos à teoria da discursivização de pessoa, veremos que não é o caso de o articulista da Folha lançar sua ácida observação sobre o pronunciamento de Lula.
Existem alguns mecanismos de projeção das pessoas discursivas no interior do enunciado. Mais especificamente, a operação chamada embreagem pode justificar a utilização da 1ª pessoa na fala de nosso presidente.
A embreagem é o retorno à estância da enunciação pelo uso de uma pessoa no lugar de outra, criando efeitos de sentido. É exatamente o que fez Lula: usou a 1ª pessoa do singular no lugar de da 3ª pessoa, criando um efeito de subjetividade, para mostrar que cabe a ele representar o Brasil.
Um procedimento inverso é o uso da 3ª pessoa no lugar da 1ª, a fim de criar um efeito de objetividade como se a pessoa falasse de um personagem. É o que faz Pelé, por exemplo: " É difícil carregar a fama do Pelé. As tentações são muitas. O Edson é humano e adoraria levar uma vida mais divertida, mas sabe que é o equilíbrio a base de Pelé. Os dois sabem quanto é importante não decepcionar o povo brasileiro" ( Veja, 4/3/2009)
O plural majestático é outro caso de embreagem: " Nós, el-rei, fazemos saber que...".
Conclusão: qualquer pessoa discursiva pode ser usada no lugar de qualquer outra para produzir efeitos de sentido.
Num artigo publicado na Folha de S. Paulo de 31/ 01/2010, Elio Gaspari relata que Lula teria dito: " O FMI chegava ao Brasil humilhando o governo, dando palpite. Se antes era o Brasil que devia ao FMI e ficava como cachorro magro com o rabo entre as pernas, agora quem me deve é o FMI". O articulista acrescentou o seguinte comentário: "O FMI não deve dinheiro a Lula. Deve ao Brasil".
Gaspari reprovou o Presidente pelo fato de usar a 1ª pessoa do singular no lugar da 3ª do singular, o Brasil. Se recorrermos à teoria da discursivização de pessoa, veremos que não é o caso de o articulista da Folha lançar sua ácida observação sobre o pronunciamento de Lula.
Existem alguns mecanismos de projeção das pessoas discursivas no interior do enunciado. Mais especificamente, a operação chamada embreagem pode justificar a utilização da 1ª pessoa na fala de nosso presidente.
A embreagem é o retorno à estância da enunciação pelo uso de uma pessoa no lugar de outra, criando efeitos de sentido. É exatamente o que fez Lula: usou a 1ª pessoa do singular no lugar de da 3ª pessoa, criando um efeito de subjetividade, para mostrar que cabe a ele representar o Brasil.
Um procedimento inverso é o uso da 3ª pessoa no lugar da 1ª, a fim de criar um efeito de objetividade como se a pessoa falasse de um personagem. É o que faz Pelé, por exemplo: " É difícil carregar a fama do Pelé. As tentações são muitas. O Edson é humano e adoraria levar uma vida mais divertida, mas sabe que é o equilíbrio a base de Pelé. Os dois sabem quanto é importante não decepcionar o povo brasileiro" ( Veja, 4/3/2009)
O plural majestático é outro caso de embreagem: " Nós, el-rei, fazemos saber que...".
Conclusão: qualquer pessoa discursiva pode ser usada no lugar de qualquer outra para produzir efeitos de sentido.
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Quem sou eu
- Mirian
- Mirian Rodrigues Braga é mestre e doutora em Língua Portuguesa pela PUC/SP. Especializou-se em analisar as obras de José Saramago. Em 1999, publicou A Concepção de Língua de Saramago: o confronto entre o dito e o escrito e também participou da coletânea José Saramago - uma homenagem, por ocasião da premiação do Nobel ao referido autor. Em 2001, publicou artigo na Revista SymposiuM da Universidade Católica de Pernambuco. Atuou como professora-assistente no Curso de Pós-Graduação lato sensu da PUC/SP. É professora de Língua Portuguesa e Redação no Ensino Médio e Curso Pré-Vestibular do Colégio Argumento.