domingo, 23 de agosto de 2009

Das relações entre língua e mundo

As gramáticas, explícita ou implicitamente, tratam das relações entre a língua e o mundo. Muitos estudiosos dedicam anos de pesquisa sobre essas relações, e Sírio Possenti é um deles. Em seu texto: Gramática - os diversos contextos - apresenta um caminho extremamente didático sobre como entender essa proximidade. Apresento algumas sinalizações que julguei interessantes.
É importante perceber que as relações entre língua e mundo existem, mas não são diretas. Ou seja, uma língua não reflete o mundo " como ele é ". A relação é mediada pela cultura. Podemos dizer que cada língua é uma visão de mundo particular. Esse fato se revela mais claramente no léxico do que na sintaxe. Por exemplo, os sistemas de parentesco ou os nomes das cores são bastante diversos conforme as diferentes línguas.
Mas, em alguns casos, a concepção de mundo ajuda a compreender aspectos da sintaxe. Vejamos alguns exemplos:
  • os verbos de ação ( correr, andar, atirar etc.) , em princípio - a não ser que se trate de figuras de linguagem ( metáforas, personificações etc.) - , só podem ter sujeitos animados, ou seja, nomes que designem indivíduos ou grupos de indivíduos que concebemos como animados. Por isso, consideramos normal O tigre perseguiu o coelho, mas achamos estranha *A alface perseguiu a vaca. ( O * indica uma construção que não existe na língua).
  • Se os verbos não admitem sujeitos de certo tipo ( por exemplo, inanimados), esse critério pode ajudar a definir, por exemplo, a classe dos verbos auxiliares. Um auxiliar não interfere na seleção de um sujeito, que é sempre feita pelo verbo principal. Assim, estranhamos * O queijo leu Os Lusíadas, também estranharemos * O queijo vai ler Os Lusíadas. No entanto, se dizemos corretamente Este queijo cheira mal, também diremos Este queijo vai cheirar mal. ( Observemos também que, se o verbo é ler, não basta que seu sujeito seja animado; é preciso também que seja humano. Por isso, também seria estranha uma frase como * O bezerro leu Olavo Bilac.
  • Usualmente, em relação aos verbos, as gramáticas e dicionários se preocupam apenas em explicitar sua regência, ou seja, o tipo de relação com seus complementos - se é direta ou indireta. Mas há outros fatores envolvidos, e estes estão até mais relacionados a aspectos culturais. Assim, por exemplo, o objeto de um verbo como beber é, tipicamente, uma palavra ou expressão que designa líquido. Por isso, consideramos normais frases como Ele não bebe coca-cola de jeito nenhum, mas é bem provável que víssemos com alguma estranheza * Ele não bebe carne malpassada.
  • Quando as frases estão em ordem direta, não há dificuldade alguma em identificar sujeito e objeto. Mas, se houver alguma inversão, pode ser que a solução esteja na consideração dos aspectos culturais. Por exemplo, a frase O frango o cozinheiro assou, saberemos que o sujeito é O cozinheiro, porque, tipicamente, cozinheiros assam frangos, e não o inverso. É claro que, se a frase for O menino o cachorro matou, o problema é mais complicado. Sua solução deve ser procurada em outro lugar, usando outros critérios ( em outro ponto da narrativa, por exemplo), porque ambos, em princípio, podem matar e ser mortos pelo outro.

Por tudo isso, devemos estar atentos não só ao conhecimento enciclopédico, mas também às relações da língua com os aspectos culturais.

2 comentários:

  1. Olá Professora!

    Gostaria de saber se na oração "O menino o cachorro matou" a ambiguidade poderia ser desfeita colocando-se uma vírgula após "O menino", caso eu queria que o sujeito seja "o cachorro".

    Bom, é isso.

    Beijos!

    PS: A senhora está lindona na foto *.*

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  2. Karianne, a vírgula pode ser uma saída, já que sinaliza que o termo em questão está deslocado.
    Quanto ao elogio, não li. Mirian.

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Quem sou eu

Mirian Rodrigues Braga é mestre e doutora em Língua Portuguesa pela PUC/SP. Especializou-se em analisar as obras de José Saramago. Em 1999, publicou A Concepção de Língua de Saramago: o confronto entre o dito e o escrito e também participou da coletânea José Saramago - uma homenagem, por ocasião da premiação do Nobel ao referido autor. Em 2001, publicou artigo na Revista SymposiuM da Universidade Católica de Pernambuco. Atuou como professora-assistente no Curso de Pós-Graduação lato sensu da PUC/SP. É professora de Língua Portuguesa e Redação no Ensino Médio e Curso Pré-Vestibular do Colégio Argumento.