segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Quando a crase muda o sentido

Em artigo recentemente publicado na revista Língua Portuguesa, Luiz Costa Pereira Júnior comenta alguns tópicos de uso de crase que merecem nossa atenção.
Sabemos que o uso da crase costuma desconcertar muita gente, mas se pensarmos em uma função, dentre muitas, de desambiguizar certas construções, aceitaremos que conhecer alguns casos previstos pela norma culta da língua ajudarão o nosso cotidiano.
O acento grave (`) no a tem duas aplicações distintas: a primeira, sinalizar uma fusão de a ( artigo) + a preposição; a segunda, evitar ambiguidade, sinalizando a preposição a em expressões de circunstância com substantivo feminino singular, em que indica que não se deve confundi-la com o artigo a. Ex: " Dilma Rousseff depôs à CPI." Sem a crase, a frase hipotética se revela ambígua: Dilma destituiu a comissão parlamentar de inquérito ou apenas deu depoimento à comissão? O sinal da crase tira a dúvida.
Por isso, a crase é, antes de mais nada, um imperativo de clareza.
Muitas frases em que a preposição indica circunstância ( instrumento, meio etc.) em sequências do tipo " preposição a + substantivo singular", podem dificultar a interpretação por parte do leitor ou ouvinte. Não raro, a ambiguidade se dissolve com a crase - em outras, só o contexto resolve.

Vejamos alguns exemplos de casos em que a crase retira a dúvida de sentido da frase:
Cheirar a gasolina (aspirar) X cheirar à gasolina ( feder a).
A moça correu as cortinas ( percorrer) X A moça percorreu à cortina (seguiu em direção a ).

O homem pinta a máquina (usa pincel nela) X O homem pinta à máquina ( usa a máquina para pintar).
Referia-se a outra mulher ( conversava com ela ) X Referia-se à outra mulher ( falava dela).
Fiz aqui um recorte do assunto, para sugerir que, em crase, a intuição e a generalização de exemplos concretos podem ser mais efetivas que a " decoreba" de regras.
Se intuímos a regra básica de que só se usa crase diante de palavras femininas quando há a preposição seguida de um artigo, evitamos ocorrências como " à 80 km", " à correr" ou " à Pedro". Afinal, nunca pensamos em crase com palavras masculinas ou verbos: daí não haver em "a lápis", " a contragosto", " a custo ".
Se lembrarmos que a crase serve para eliminar a ambiguidade, também evitamos tirar o acento indicador da crase em contextos que pedem, por exemplo, " à beira", " à boca miúda", " à caça". Acredito que assim fica muito mais fácil pensar em crase - um assunto que pode tirar o sono de muita gente.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Quem sou eu

Mirian Rodrigues Braga é mestre e doutora em Língua Portuguesa pela PUC/SP. Especializou-se em analisar as obras de José Saramago. Em 1999, publicou A Concepção de Língua de Saramago: o confronto entre o dito e o escrito e também participou da coletânea José Saramago - uma homenagem, por ocasião da premiação do Nobel ao referido autor. Em 2001, publicou artigo na Revista SymposiuM da Universidade Católica de Pernambuco. Atuou como professora-assistente no Curso de Pós-Graduação lato sensu da PUC/SP. É professora de Língua Portuguesa e Redação no Ensino Médio e Curso Pré-Vestibular do Colégio Argumento.