quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Laboratório Gramatical

Contrariamente ao que a maioria das pessoas pensa, as regras (as leis) que regem a língua podem ser testadas. Sírio Possenti mostra-nos que isso é possível da mesma maneira que se aplicam as regras da Física e da Química, em certo sentido, isto é, mudando-se uma das variáveis em um experimento qualquer, o resultado poderá ser diferente.
Consideremos, por exemplo, o caso dos chamados adjetivos com função de advérbio, em exemplos como Ele anda rápido. Em aula, o professor pode querer convencer o aluno de que "rápido" aqui é advérbio ( com função de adjunto adverbial e não de predicativo do sujeito).
É perfeitamente possível provar que se trata de um advérbio. Para tanto, basta alterar uma variável. O procedimento é simples. Se for predicativo do sujeito, "rápido" concorda com o sujeito. Dado que esse exemplo é como é, o teste é inútil, porque tanto se pode dizer que "rápido" concorda com "ele" quanto que é um advérbio, porque é invariável. O teste consiste, pois, em mudar o sujeito. Em vez de "ele", tente-se com "ela" ou com "eles". Se o sujeito for assim alterado, o resultado será:
Ela anda rápido.
Eles andam rápido.
Nesses casos, se houvesse concordância, ela seria visível:
Ela anda rápida.
Eles andam rápidos.
Claro essas orações são do português. Mas o teste exige que se mude uma variável de cada vez, para não perder o controle do experimento. Para tanto, a mudança do sujeito não pode ser acompanhada da mudança de sentido do verbo.
No primeiro caso, quando "rápido" não se flexiona, "andar" significa 'caminhar', 'deslocar-se'. No segundo, quando se trata de predicativos do sujeito, "andar" denota um estado (dela ou deles) - e "anda rápido" pode ser parafraseado por "está(ão) rápida(os)".
Também pode-se testar a função de 'rápido' substituindo por "rapidamente". É outra forma de mostrar que se trata de um advérbio, mas ela é menos evidente, depende mais da intuição do que da demonstração.
Assim, construir (ou estudar) uma gramática não é apenas aceitar que determinada construção tem um valor ( certo, por exemplo), e que outra tem outro ( errado, digamos). Trata-se de uma atividade de conhecimento muito semelhante à produzida em outros campos, mesmo os chamados tradicionalmente de científicos.
As gramáticas são teorias da língua e, eventualmente, para compreendê-las ou construí-las, é necessário eliminar o senso comum.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Quem sou eu

Mirian Rodrigues Braga é mestre e doutora em Língua Portuguesa pela PUC/SP. Especializou-se em analisar as obras de José Saramago. Em 1999, publicou A Concepção de Língua de Saramago: o confronto entre o dito e o escrito e também participou da coletânea José Saramago - uma homenagem, por ocasião da premiação do Nobel ao referido autor. Em 2001, publicou artigo na Revista SymposiuM da Universidade Católica de Pernambuco. Atuou como professora-assistente no Curso de Pós-Graduação lato sensu da PUC/SP. É professora de Língua Portuguesa e Redação no Ensino Médio e Curso Pré-Vestibular do Colégio Argumento.